RELLIBRA

LIBEA - Literatura Brasileira de Expressão Alemã
PROJETO DE PESQUISA COLETIVA (USP/Instituto Martius-Staden)
Grupo de pesquisa RELLIBRA – Relações linguísticas e literárias Brasil-Países de língua alemã
Coordenação geral: Celeste Ribeiro-de-Sousa
Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã - USP

 

ECKHARD ERNST KUPFER (1942-): VIDA E OBRA

Autoria: Celeste Ribeiro de Sousa, 2019.
Direitos autorais: veiculação autorizada pelo autor.
Como citar: Ribeiro-de- Sousa, Celeste. Eckhard Ernst Kupfer (1942- ): vida e obra. São Paulo: Instituto Martius-Staden, 2019.

Dados biobibliográficos

Eckhard Ernst Kupfer nasceu na cidade de Stuttgart, no sul da Alemanha, em 1942 e formou-se em Letras e Filosofia na Universidade de Stuttgart. Em seguida, cursou Comércio Exterior e Logística na Universidade de Bremen. Trabalhou na Alemanha e nos USA. Mudou-se para o Brasil em 1977, para a cidade de São Paulo, onde fixou residência. Aqui, hoje, atua em diversas áreas: como jornalista independente, colabora regularmente com o site Brasil-Alemanha. É também diretor do Instituto Martius-Staden, sendo o editor do Martius-Staden-Jahrbuch.  No seu horizonte de trabalho está o intercâmbio de relações entre o Brasil e os países de língua alemã. Para um conhecimento mais aprofundado deste autor seguem suas próprias palavras, extraídas da introdução aos poemas do livro Sobre viver  Über leben, publicado no começo de 2019:

 

Este texto serve como uma reflexão sobre a minha vida, mas não como registro cronológico, pois a vida não é um processo linear, mas sim uma corrida de obstáculos com muitos desvios e alterações de rota. Quero apresentar um tanto da minha trajetória até este momento, a sobrevivência durante a época da Segunda Guerra Mundial, o período crítico da juventude, acompanhado da insegurança diante da vida e da constante pergunta: para que viver? É preciso mesmo continuar a viver? Quando se nasce em tempos de guerra, a vida não toma um rumo normal. No meu caso, que nasci em maio de 1942, quando meu pai estava em serviço militar na França, minha vida começou com a palavra “despejo”. Minha mãe, que morava apenas comigo em um apartamento em Stuttgart, precisou abrir mão dele para dar espaço a famílias cujos apartamentos e casas tinham sido destruídos por ataques aéreos. Nos mudamos para a casa de meus avós paternos, que moravam em uma cidade pequena, onde, à época, não se sentiam os reflexos da Guerra. Claro que eu era pequeno demais para me lembrar de qualquer acontecimento, o que mudou no ano de 1945, quando a guerra estava chegando ao fim, e as Forças Aliadas não poupavam sequer as cidadezinhas alemãs. Morávamos com meus avós em um apartamento no prédio de um mestre-carpinteiro que tinha sua carpintaria no térreo. Uma bomba caiu diretamente sobre a casa em um ataque aéreo. A sirene local soara o alerta, e assim os moradores buscaram abrigo nos porões. Os porões nesses prédios eram pequenas fortalezas, pensados no passado como fundação para o edifício, depois como depósito para armazenar alimentos, madeira e carvão para aguentar os invernos e, por fim, como proteção contra os ataques bélicos, pois o país já havia passado por uma grande guerra havia não muitos anos. Sobrevivemos nesse porão com outros moradores, mas os apartamentos foram destruídos. Nos mudamos para um apartamento fora dos muros da cidade, ao largo da praça do mercado, onde os móveis da minha mãe já estavam guardados. O que restou depois do ataque aéreo foi levado à nova casa em carroças. Minha mãe carregava os alimentos e, para tanto, encaixara um cesto de vime redondo entre minhas pernas no carrinho de bebê. Numa das últimas viagens pelas pedras irregulares do calçamento da ladeira da rua principal, passamos por uma grande casa de enxaimel, onde sempre houvera uma loja com todo tipo de artigos para casa. Concentrando forças, minha mãe arfava e empurrava adiante o carrinho comigo e os alimentos quando de repente um desconhecido correu até ela, agarrou seu casaco de inverno preto e a puxou com todas as forças. No mesmo momento, uma viga em chamas da casa de einxamel caía atravessada sobre a rua. Ela teria nos matado. Esse foi o primeiro obstáculo. A guerra ainda não havia terminado, mas os tanques se aproximavam cada vez mais, e os aviões atiravam em todos os locais onde não houvessem hasteado a bandeira branca da rendição. Embora a cidade não tivesse mais nada a perder, o Ortsgruppenführer, o líder regional do Partido, não se entregava. Talvez tivesse medo do que o aguardava. Havia dias tranquilos, nos quais nada acontecia, nenhum ataque, nenhuma notícia de rádio, então nós, crianças, nos reuníamos no bosque de tílias vizinho e brincávamos com a nossa imaginação. Mas, de repente, ouvíamos o assobio dos caças e cada um corria na direção de sua casa. Numa dessas vezes, mal havíamos fechado a porta, uma tília milenar despencou com um estalo infernal e estrépito, uma árvore enorme, derrubada como se fosse uma frágil bétula. Quando a cidadezinha foi ocupada, nós, as crianças, fomos os primeiros a fazer amizade com os soldados norte-americanos da ocupação, e com isso ganhávamos chocolates e laranjas. Pode soar improvável quando afirmo que ainda consigo me lembrar dessa época, no ano de 1945, com pouco mais de três anos. Mas devem ter sido tais acontecimentos especiais que ficaram registrados nas minhas lembranças. Aos 16 anos, li O mito de Sísifo, de Albert Camus. Seu conhecimento do absurdo da vida em um mundo tacanho trouxe-me as primeiras dúvidas. Deveria eu, como Sísifo, passar a vida inteira em vão empurrando uma pedra montanha acima, mesmo sabendo que ela voltaria a rolar montanha abaixo, ou deveria me retirar desse teatro absurdo e dar adeus à vida de uma vez? Daí logo surgiu a questão: suicídio ou o quê? Em um dos textos que aparecem neste livro, descrevi minhas alternativas: suicídio ou um poema. Desde muito cedo, escrever espontaneamente foi uma saída para mim em dias críticos, como se essa luta absurda acontecesse dentro de mim para possibilitar uma cura e uma sobrevida. Do ponto de vista financeiro, me economizou também muitos gastos, pois eu não precisava de psicólogo ou de terapia. Paralelamente, eu lia com fascinação Os demônios, de Dostoiévski, em cujo último capítulo se descreve o suicídio imposto de Alexei Kiríllov, que explica sua partida assim: “Eu morro para provar que Deus não existe. Porque, depois disso, o ser humano fica livre, e é ele o próprio Deus”. Esse conflito contínuo, que em última instância também é instigado pelas religiões a fim de reprimir o ser humano, infundir nele o sentimento de culpa para que peça perdão de forma puerilmente devota e benevolente por algo que não fez, esperando uma vida melhor após a morte — essa discrepância entre a vida real e o pensamento, seja intelectual ou espiritual, não pode ser solucionada. A maioria dos filósofos tentou, mas fracassou, pois quiseram evadir esse dilema por meio de um salto irracional. Buscaram refúgio na metafísica, na estética pura, no pensamento religioso ou racionalista. Essa influência filosófica absolutamente não contribuiu para que eu me lançasse na vida com determinação. Eu me deixei levar. Por um lado, fui covarde demais para acabar com tudo e, por outro, via as dificuldades daqueles que se esfalfavam para atingir um objetivo de vida. Nessa fase de desorientação, um ídolo entrou em minha vida — James Dean, que representava com perfeição, no filme “Rebelde sem causa”, aquela juventude sem objetivo, sem freios e cheia de inseguranças. Em outro filme, “Assim caminha a humanidade”, ele novamente representou um pobre-diabo, desprezado e humilhado por um fazendeiro texano arrogante que enriquecera com perfurações de poços de petróleo e se tornara um arrivista. Embora James Dean já estivesse morto quando o filme chegou à Alemanha, nós nos reconhecíamos nesse jovem rebelde, e eu quis ser como ele. Ele tinha 24 anos, se tornou o ídolo de uma geração e assim permaneceu. Não importa se sua morte acidental foi suicídio ou apenas negligência; ele já havia se transformado em nosso novo Deus, tal como Kiríllov descrevera em Os demônios. Na solidão e na insegurança, o homem busca determinados círculos nos quais possa encontrar a sensação de pertencimento. As pessoas refestelam-se em sua tristeza, em sua depressão, mas procuram contato com outros e se surpreendem quando encontram parceiros de alma. É raro que se chegue a um diálogo verdadeiro; há um encontro de monólogos, que, no entanto, pode ser significativo. Conhece-se o modo de pensar, as questões e as dúvidas de outros. Porém, surge ao mesmo tempo uma competição, pois há o desejo de ser percebido, admirado ou mesmo invejado. E, naturalmente, há o puro desejo sexual e amoroso. Talvez surja assim, pela primeira vez, um sentido para a vida, com o desejo de conquistar, ganhar a preferência e os sentimentos de uma garota — o instinto primordial. Mas também isso não termina muito bem. Existe sempre uma insegurança, há pouco a oferecer; como é possível impressionar alguém dessa forma? Então, podem ser apenas palavras, argumentos e discussões nas quais a pessoa se destaca, chama atenção para si e se projeta como vencedor. O avanço intelectual, por sua vez, mostrou-se um bicho de sete cabeças. A filosofia desperta mais questões e mais dúvidas, aponta possibilidades em cujos caminhos é possível pensar. Pouco ajuda tentar entender Kant e Hegel, o que falha na maioria das vezes; então vamos a Nietzsche, cujos textos são apenas parcialmente úteis. Afinal, ele falhou consigo próprio, o que novamente prova o absurdo. Então se chega inevitavelmente a Sartre, que representa a existência de modo pragmático, contudo sem esperança na felicidade. Ao continuar a busca em Marcuse e Adorno, achei o presente insuportável, o que levou necessariamente ao conflito com a realidade. O entorno da Alemanha do pós-guerra, no fim dos anos 1950 e início da década de 1960, ficava cada vez mais reacionário, crente na autoridade e marcado pelas instâncias tradicionais. Talvez não pudesse ser diferente, pois ninguém podia simplesmente tirar o chapéu, depois de uma derrota total, a um novo povo. Não conseguimos compreender à época que se trataria de um lento processo. Nessa época, pela primeira vez, senti que compreendia o outro. Quando se participa de um movimento social que deseja mudar algo, é possível descobrir um sentido para a vida. Formar uma nova sociedade, derrubar convenções encrustadas, questionar, provocar e tentar mudar. Esse espírito de otimismo ia bem, contanto que se pudesse expressar o conflito com manifestações, ocupações, greves e protestos, bem como em publicações, declarações e boletins. Mas então surgiu o ponto crítico nas longas discussões noturnas: mudanças por subversão e violência ou pela longa marcha dentro da legalidade? Foi o que nos dividiu. Camaradas queridas e queridos transformaram-se em inimigos, ou as pessoas se desprezavam e ironizavam. Doía. Talvez os mais violentos tivessem razão, talvez os outros fossem apenas covardes. Lá estava ele de novo, o medo existencial. Assim, os caminhos se separaram, quem queria a violência enveredou por ela. O aparelho estatal revidava sem piedade e destruía quem se pusesse contra ele; sempre foi assim e sempre será. O covarde, no entanto, adaptou-se à vida real, vivendo em seus pensamentos e livros, encontrou saídas alternativas, como o engajamento em partidos políticos que tinham um programa que era possível representar, supostamente social e justo. Era uma saída momentânea, mas decepcionava. Já então se tratava de posicionamento e poder. Nada mudou. Então me deixei levar pela vida, vendi um pedaço de mim, fui bem remunerado, podia consumir, e assim me tornei um seguidor, uma formiga funcional da sociedade. Pois não importa se alguém age de forma educativa ou produtiva, permanecerá sendo uma engrenagem da sociedade, cumprindo uma função como bilhões de outros, totalmente substituível. Ao fim, a pessoa talvez deixe um patrimônio pecuniário ou obras que sobreviverão a ela, sejam escritas, filmadas, pintadas ou construídas. Alguns ainda vão se lembrar um pouco dessa pessoa por algum tempo, depois será esquecida. Poucas são as exceções, aqueles que permanecem. Podem ter sido generais ou líderes, artistas, inventores, cientistas. Mas fazer parte desses poucos é como acertar todos os números da loteria. Muitos tentam, poucos conseguem. Bem, chegamos novamente à inutilidade de Sísifo, ao tentar dar um sentido à vida e ao trabalho. Ele sempre vai tentar rolar a pedra montanha acima, mas a pedra voltará a rolar montanha abaixo. Sua única felicidade, porém, é ter tentado enquanto vivia. Talvez seja este o único sentido da vida: tentar vencer a inutilidade.

Eckhard Ernst Kupfer publicou as seguintes obras:

 

Poemas:

Sobre viver  Über leben. São Paulo, Patuá, 2019. Deutsch/Português

 

Ensaios (organização em conjunto com Willi Bolle).

Cinco séculos de relações brasileiras e alemãs. São Paulo, Editora Brasileira de Arte e Cultura, 2012.  Deutsch/Português

Relações brasileiras e alemãs na época contemporânea. São Paulo, Editora Brasileira de Arte e Cultura, 2013.  Deutsch/Português

 

Livro de artigos jornalísticos

Weltgeschichten. Pressekommentare aus den letzten 15 Jahren. São Leopoldo, Oikos, 2012.

 

Resumos comentados

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Bibliografia crítica

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